segunda-feira, 31 de maio de 2010

carta II




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Olha para mim. Não te atrevas a fazer de conta que não estou aqui, tu sabes que eu existo.
Já fui o doce nos teus lábios, a secura das palavras. Em tempos percorri-te, eléctrica, fui o sexo no teu corpo. Deixaste-me ser a sombra dos teus passos, a brisa nas portas que se abriam à nossa passagem.
Não te atrevas a fazer de que conta que não estou aqui, tu sabes que não fui embora ainda.
Pesa-me em memórias o crucifixo onde me enalteceste. Eu nunca disse que sofreria por ti. Nunca te prometi a eternidade, nem tão pouco o presente instantâneo de uma mousse de chocolate. Eu não sou de fazer promessas, pelo medo horrendo da culpa por não as ter cumprido. Olha para mim. Não chores. Não te atrevas.
Já foste poesia nas minhas impressões digitais e estradas longas em noites de calor. A minha lareira em pleno inverno, sonhos a voar pela boca, adolescente. Foste a coisa mais pura que consegui construir, e ao mesmo tempo sinto-me corrompida por te chamar coisa.
Coisa. Coisa. Coisa.
Em tempos fui a faca e tu o talhante. Os corações de ambos à mercê da loucura. Mas tu safas-te sempre dessas misérias, és um gajo esperto. Por isso é que agora não te admito que me vires as costas.
Olha para mim. Não te atrevas a dizer-me que vais sempre recordar, tu sabes que o tempo esquece tudo. Não me mintas tão descaradamente; eu já fui o teu corpo, já vivi na tua mente, eu pertenci à tua voz.
Olha para mim, só. Porque eu só vou partir quando me olhares nos olhos e eu conseguir despachar para a tua alma o peso que carrego por ter chegado o fim. És a faca e o talhante agora.
Eu levo o coração.

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