Cala-te.
Repugna-me esse teu jeito malfeitor de quem consegue sempre o que quer, como se a felicidade te estivesse destinada. Desengana-te meu menino, terás de sofrer, penar, rasgar os joelhos e lamber as feridas sozinho - porque eu embarco hoje num qualquer comboio, alfa pendular, intercidades, nao importa, o que eu quero é ir para longe.
Tenho saudades de tanta coisa que nem sei por onde começar, e tenho principalmente saudades de saber o que é não ter saudades de algo. Há quem diga que é um sentimento bom, que é sinal de que se está vivo. Eu cá por mim julgo que não, que é um sentimento que corrói, que enferruja, que faz brotar ervas daninhas no mais bonito dos jardins. Não quero ter ervas daninhas.
Cala-te, já disse. Não foi um pedido, nem uma ordem, foi apenas e simplesmente uma constatação de uma melhor realidade para ambos: o teu silêncio.
O simples zumbido do teu respirar recorda-me da tua existência e desse jeito forçado que sempre tiveste para dizer 'eu amo-te'. Não quero esmolas, pedaços de ti, sempre te quis todo e se não souberes como se faz, vai aprender e regressa um dia mais tarde, quando souberes. Não, não te vou ensinar, não te vou explicar que o amor é um baralho de cartas em que nenhuma é a mais alta, em que ninguém vence, não te vou dizer que passar a noite acordada no escuro a sentir o amor dormir é a melhor sensação de todas, não, não te vou contar como é que se faz para prendermos a nossa cara metade numa roleta russa em que todos ganham, todos perdem, em que a sorte não existe, simplesmente se joga. Esquece, não vais aprender tão cedo que não tens de abdicar de ti, tens simplesmente que me aceitar a mim como parte integrante do teu ser, quase como a tua sombra, inseparável mas sem perturbar a tua individualidade - habituas-te a que ela esteja sempre presente, e até estranharias se não estivesse. É assim o amor, feito de luzes e sombras, sóis e tempestades, e principalente feito de coisas inexplicáveis, que não, não te vou explicar, porque quero que aprendas para que um dia mais tarde, quando souberes, regresses.
Já disse que quero que te cales?
Mas tu já não ouves. Já não reclamas das minhas fobias, manias, ideias, já não reclamas das necessidades, dos pormenores, das picuinhices. Simplesmente já não falas, e não foi por eu te ter mandado - pedido, constatado, qualquer coisa desse género - calar. Foi, sem mais nem menos, porque resolveste abandonar este terreno inóspito a que chamavamos relação. Não vou atrás de ti e sabes porquê? Porque olho a tua sombra, mal viras costas, e percebo que não sou eu nela reflectida. Na minha mão, rendida, a tabela de horários dos comboios. Para onde ir?